quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

A brasileira do ano , Dilma Rousseff




Sonho e realidade: imagens do álbum de infância, à direita com a mãe,Dilma, o irmão, Igor, e o pai, Pedro, e abaixo, nos tempos de militância,em foto do Arquivo do Estado de São Paulo


DILMA ROUSSEFF
A brasileira do ano
Após crises e torturas, a chefe da Casa Civil chega ao topo da carreira , de ex-guerrilheira,economista, executiva a ministra.
Luiz Cláudio Cunha
A postos no gabinete: a seriedade ea competência conduziram-na ao segundo posto do governo, atrás apenas da Presidência da República.
Os grandes olhos castanhos da menina de dez anos, sentada na calçada, ficaram ainda maiores quando ela viu a bailarina, com uma brilhosa roupa verde, executando malabarismos no dorso do elefante. Era o circo rasgando a quietude da pacata Uberaba (MG) no final dos anos 50. Era o maior espetáculo da terra caindo no colo da garotinha extasiada: “Ela era linda, fazendo piruetas lá em cima. Eu adorava circo e queria ser bailarina”, lembra hoje, com os olhos iluminados pela recordação, a frustrada bailarina Dilma Vana Rousseff. Aos 57 anos, passando um rápido olhar sobre o circo da vida brasileira, que acompanhou, aos saltos e sobressaltos, nas últimas quatro décadas, atravessando crises, golpes, renúncias, cassações, prisões, torturas, ditadura, cassações, democracia e cassações, Dilma chega em 2005 ao topo de sua longa e atribulada carreira como economista, executiva, militante política e ministra. Desde junho ela faz suas piruetas no dorso do elefante petista, no Palácio do Planalto, onde o presidente Luiz Inácio Lula da Silva a escalou como ministra-chefe da Casa Civil, substituindo José Dirceu, a maior atração do PT velho de guerra, engolido pelo leão do mensalão.
“Não sou a primeira-ministra, até porque o Brasil é muito presidencialista”, diz ela, escolhida também a economista do ano pelo Conselho Regional de Economia do Rio Grande do Sul, na quinta-feira 8, negando a condição de capitão do time que o técnico Lula um dia pespegou em Dirceu. “Sou apenas a ministra que faz a articulação transversal com os outros ministros. Minha obrigação é tratar os problemas dos outros como se fossem meus”, diz, sentada no sofá de visitas da casa oficial, no Lago Sul de Brasília, que ela herdou do sucessor junto com o dócil Nego, o cão labrador de pêlo negro que nunca a deixa só. Mineira de Belo Horizonte, criada em Uberaba, separada de dois casamentos, Dilma precisa viajar para reencontrar a família: a mãe, viúva, mora na capital mineira, assim como o irmão, advogado, mas para ver a única filha, Paula, juíza do Trabalho, toma o rumo de Porto Alegre, onde ainda mora o segundo ex-marido, o ex-deputado e ex-guerrilheiro Carlos Franklin Paixão de Araújo. O primeiro, o jornalista mineiro Cláudio Galeno de Magalhães Linhares, tinha desviado a jovem Dilma, aos 20 anos, para o circo implacável da luta política, recrutando sua noiva no curso de economia, em 1967, para a militância da Política Operária (Polop), organização doutrinária da esquerda. Antes, aos 15 anos, quando trocou o conservador colégio Sion, onde as moças só falavam francês com as professoras, pelo inquieto Colégio Estadual, escola pública mista onde se geravam contestações, Dilma já desabrochara: “Aí fiquei bem subversiva. Percebi que o mundo não era para debutante”. Correndo da polícia, fazendo passeata para apoiar os operários em greve em Contagem, Dilma viu os primeiros companheiros sendo presos pelo regime que apertava o nó. “O AI-5 foi meu presente de 21 anos. Saiu na véspera de meu aniversário, 14 de dezembro de 1968”, conta. Ela e o marido, visados pela polícia, conseguem escapar do cerco, fogem para o Rio de Janeiro e, como tantos outros jovens, caem na clandestinidade.
A Polop se transformou em Comando de Libertação Nacional (Colina), que reunia pequenos grupos da esquerda radical, e a estudante Dilma virou professora, ensinando marxismo a militantes do setor operário. Ajudou na infra-estrutura de três assaltos a bancos, assinou artigos no jornal Piquete e chegou à direção do Colina. Nessa condição, planejou o que seria o mais rentável golpe da luta armada em todo o mundo: o roubo do cofre de Adhemar de Barros, ex-governador de São Paulo. A proeza coube à Vanguarda Armada Revolucionária-Palmares (VAR-Palmares), resultado da fusão da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) do capitão Carlos Lamarca com o Colina de Dilma Rousseff. Onze dias depois da fusão, em julho de 1969, 13 guerrilheiros da VAR-Palmares roubaram o cofre de 200 kg de uma casa no bairro carioca de Santa Tereza, onde vivia a amante de Adhemar. “A gente achava que ia ser grande, mas não tinha noção do tamanho”, lembra Dilma. Aberto o cofre, sacaram de lá US$ 2,6 milhões – hoje uma mega-sena em torno de R$ 25 milhões. A diária mirrada dos guerrilheiros dava para comer um único risoto por dia, num pé-sujo do centro do Rio. “Eu era magra como um palito, tinha pouca fome, e muitos gostavam de almoçar comigo porque comiam minha metade”, recorda ela, notando que o bote milionário não melhorou o cardápio extra-light da guerrilha: “Estava muito difícil trocar o dinheiro, porque havia um cerco total. Dois meses depois, com o seqüestro do embaixador americano, Charles Elbrick, a situação ficou ainda pior no Rio.”

Dura na queda, Dilma bateu boca com Lamarca, que sustentava a tese guevarista de levar a luta para o campo. Ela achava que a guerrilha precisava, antes, se organizar melhor nas cidades. Seus companheiros dizem que ela ajudou a preservar a VAR-Palmares mesmo com o racha de Lamarca, que saiu para recriar a VPR. O líder da VAR-Palmares era Carlos Araújo, que seria seu segundo marido (Galeno, o primeiro, participou do seqüestro de um avião e se exilou em Cuba). No início de janeiro de 1970, Dilma seguiu a sina de outros companheiros: “Entrei num ponto, às 4 h da tarde, em São Paulo, e o companheiro estava cercado. Tentei fugir, entrando numa loja de móveis, mas fui pega na rua de trás”. Dilma Rousseff, aos 22 anos, foi levada pelo antecessor do DOI-Codi, a Oban (Operação Bandeirante), para a rua Tutóia, o mesmo destino de Wladimir Herzog cinco anos depois. Vlado agüentou um dia de tortura, e morreu. Dilma suportou 22 – e sobreviveu. “Levei muita palmatória, me botaram no pau-de-arara, me deram choque, muito choque. Comecei a ter hemorragia, mas eu agüentei. Não disse nem onde morava. Um dia, tive uma hemorragia muito grande, hemorragia mesmo, como menstruação. Tiveram que me levar para o Hospital Central do Exército. Encontrei uma menina da ALN: ‘Pula um pouco no quarto para a hemorragia não parar e você não ter que voltar’, me aconselhou ela, segundo o dramático relato que Dilma fez, dois anos atrás, ao repórter Luiz Maklouf Carvalho.
“Tortura é uma das coisas mais vis que existem”, reflete Dilma hoje, com o distanciamento possível. “O sentido mais profundo da democracia significa necessariamente acabar com a tortura”, diz a ex-torturada, hoje aflita com a sorte dos presos comuns nas delegacias de polícia. A tortura ainda aflige Dilma, aqui e lá fora: “Aquelas cenas de homens presos em Guantánamo (Cuba) e em Abu Ghraib (Iraque) não têm justificativa. Aquilo é a barbárie”, condena. Passado o martírio da Oban, Dilma passou outros dois meses no DOPS antes de ser transferida para o presídio Tiradentes – onde ficou até 1973, com a cabeça em ebulição. “Na prisão, a gente podia refletir e ler muito. Li Levi-Strauss, Poulantzas, quase todo Dostoievski. A vida na prisão pode ser muito rica. Na guerrilha, a gente já percebia um certo impasse, uma espécie de beco sem saída. A luta armada não faria avançar um país tão complicado, tão diverso e plural como o Brasil”, repensa Dilma.
O jogo político tradicional parecia o caminho, quando ela voltou a Porto Alegre,ainda sozinha: o marido, Carlos Araújo, também preso pela Oban, cumpria penana Ilha das Flores, prisão da Marinha no rio Guaíba, na capital gaúcha. Dilmaintegrou-se à juventude do MDB e militou na luta pela anistia. Punida pelo Decreto 477, que bania subversivos da universidade, foi obrigada a prestar novo vestibular. Formou-se em economia pela Universidade Federal do RS e foi, mais uma vez, atropelada pelo arbítrio: em 1997, o ministro linha-dura do Exército, Sylvio Frota, reagiu à demissão do cargo pelo general Ernesto Geisel divulgando uma lista de 99 comunistas infiltrados no governo – um dos três economistas delatados na Fundação de Economia e Estatística (FEE) era Dilma, que acabou demitida. “Completei minha cota – fui presa, cassada, condenada, punida pelo 477 e incluída na lista do Frota”, brinca Dilma, hoje, rindo da própria sorte. Condenada pela Justiça Militar a seis anos de prisão, cumpriu três e, com recurso, acabou punida com dois anos e um mês de cadeia. “Ou seja, sobraram 11 meses, que eles não devolveram. Sou credora do País”, contabiliza Dilma.
O PDT levou Dilma para a Secretaria da Fazenda de Porto Alegre, quando Alceu Collares se elegeu em 1985. Numa pirueta digna de bailarina, voltou como presidente à mesma FEE de onde saíra pela delação de Frota, indicada pelo governador Collares, eleito em 1990. Acabou secretária de Minas e Energia do Estado com Collares e repetiu a dose, no governo seguinte, de Olívio Dutra, graças à aliança PDT-PT. Dois dias depois, deu um apagão no Estado – e durante 31 dias a luz ia e vinha, com black-outs de até sete horas. Dilma executou uma operação de emergência, concluiu uma linha de distribuição para canalizar a energia que vinha da Argentina – e a luz se fez. “Quando bateu o apagão no governo FHC, o Rio Grande do Sul não teve nenhum problema, a região Sul já era superavitária.” E botou o dedo na tomada para punir denúncias de corrupção na Companhia Estadual de Energia Elétrica, abrindo sindicâncias que levaram a uma CPI na Assembléia gaúcha. Em 2001, trocou o PDT pelo PT, acompanhando uma dissidência liderada pelo ex-prefeito Sereno Chaise. O ex-amigo Collares não perdoou nunca: “Ela é uma traidora. Se tivesse consistência ideológica, não seria ministra do governo Lula.”
Pois foi a consistência de seu trabalho no Grupo de Infra-Estrutura da transição de Lula que alçou Dilma ao posto de ministra de Minas e Energia, em 2003. Ela chegou lá com uma vela acesa para evitar que o apagão tucano voltasse a acontecer no governo petista. “O setor elétrico estava com a receita reduzida em 20%, endividado em dólar e com os sinais trocados – o mercado planejando e o governo fazendo o preço”, lembra. Dilma comemora o fato de agora o País ter quase toda a energia de que precisa contratada até 2010, o que dá espaço para prever novas fontes. “Aumentamos a oferta de energia em 14,8% entre 2002 e 2005 e temos em construção 14 usinas hidrelétricas e duas térmicas”, festeja. A crise ética que afundou o PT e suas maiores estrelas, incluído José Dirceu, levou Lula ao inevitável: chamar Dilma para o cargo mais poderoso do Planalto, depois do próprio presidente. Ela assumiu tentando desfazer a idéia de que era uma técnica fria substituindo um cérebro político. “Metas de governo são uma escolha política. Estou na fronteira, na interseção do técnico com o político”, avisa, com a autoridade de quem sabe o que quer e do que o governo precisa. “A Dilma tem uma grande vantagem: ela não chama o poder para si, como fazia o Zé Dirceu”, observa um amigo de ambos, o deputado federal Luciano Zica (PT-SP). “Dilma não arrota o poder que tem, ao contrário do Zé, que exibia mais poder do que tinha”, diz, lembrando que, num eventual segundo governo Lula, Dilma está condenada a ser ainda mais forte. “Quem sabe até uma ministra da Fazenda”, provoca Zica. A própria Dilma, sem travas na língua, mostrou luz própria numa franca entrevista ao jornal O Estado de S.Paulo, no mês passado, para dizer o que o País, os empresários, a imprensa e a ala esquerda do PT pensam: a política econômica tem que mudar. Pela primeira vez, o inabalável Antônio Palocci tremeu na base, mas os fatos teimam em dar razão a Dilma. O PIB caiu, no terceiro trimestre, e o próprio Lula está incomodado. Jeitosa, Dilma não deixa de elogiar seu companheiro da Fazenda: “Palocci tem o mérito de ter estabilizado o País. Mas hoje temos plenas condições de discutir como nos desenvolver – e isso não pode ser feito sem investimento pesado. É uma questão de dosagem. É importante manter a inflação sob controle, mas é possível também ter um processo de desenvolvimento sustentado. Não são opostos. Dá para conciliar”, diz, sem fazer concessões.
Dilma Rousseff fala das letras trágicas do tango que ela começou a entender na cadeia, dos versos tristes dos blues de Billie Holiday, dos lamentos nostálgicosde London, London chorados pelo Caetano Veloso do exílio londrino. Fala da repressão, da crise, da tortura, da ditadura. E, apesar de tudo, sorri. Um sorrisoaberto, doce, firme, de quem só pode ver o melhor depois de viver o pior. Dilma Rousseff mais do que sobreviveu. Venceu. “Só pra saber que nunca fui uma menina cândida: eu sei montar e desmontar, de olhos fechados, um fuzil automático leve. Tinha que ser rápido, muito rápido. E, se você quer saber, eu sei atirar”, lembra, abrindo um enorme sorriso. O Brasil está precisando, cada vez mais, do tiro rápido e certeiro da Brasileira de 2005.

3 comentários:

  1. Lula pode ser boquirroto, mas não é bobo.

    Sei disso desde quando desenhei-o e conversamos no Pedacinhos do Céu,

    do mestre cavaquinista Ausier Vinicius, em 1997, em pleno ostracismo entre eleições.


    Ao escolher Dilma como sua candidata, aposta na ética e fidelidade de uma autêntica revolucionária.

    Dilma nunca lhe puxará o tapete, e após um mandato, estará pronta para devolvê-lo a quem de direito, o próprio Lula, em 2014.


    É um recado também para os "companheiros" do PT, onde não encontrou ninguém com a mesma sinceridade ,

    competência, e disposição para dizer-lhe algumas verdades.

    Além da perseverante prática da alopragem e heterogeneas fontes de rendas.


    Ao ascender Dilma à Casa Civil, temos que agradecer

    ao Zeca Diabo, o Zé Dirceu, de controverso portfólio político

    ( quase cinco anos incógnito pela cirurgia plástica no Paraná,

    enquanto o pau quebrava entre os antigos camaradas,

    quase todos mortos pela repressão)

    o resgate político dessa lutadora , que não é um quadro do PT.

    Pelo menos nisso, Zé, o mensalão foi 51, uma boa idéia.


    Por caminhos transversos, chegamos finalmente

    à oportunidade de sermos presidenciados por uma mulher.


    Há muito que se reescrever na História oficial da humanidade,

    que submeteu sempre metade da população à outra ,

    sem nenhuma razão a não ser a exploração capitalista acumulativa ,

    a paradigmas de submissão e omissão, perpetuados por machistas assombrados,

    impedindo que as mulheres pudessem demonstrar na prática

    o quanto são superiores aos homens.


    A natureza dotou-as de uma característica que só os religiosos,

    e obtusos assustados pela concorrência superior, teimam em não ver.

    Sem elas, não há evolução, não há humanidade, nem fiéis para as suas igrejas.


    Perguntem a um homem o que pensa de gestar

    e gerar um filho no seu ventre,durante nove meses.


    No universo democrático que arduamente tentamos construir,

    onde há necessidade de planejamento, raciocínio, perseverança e criatividade,

    o ambiente é dominado pelas mulheres.


    Nas universidades, nas empresas, nos concursos públicos,

    a mulher galga pacientemente a sua supremacia.


    Desde criança ouço falar de que fulano casou-se

    com uma mulher de personalidade forte, uma pena, porisso é dominado.

    Tentei descobrir uma que não tivesse, a não ser que doente e indefesa.Nunca conseguí .

    Não há , como entre os homens , mulheres de personalidade fraca.


    São todas fortes, algumas fortíssimas.

    Dessas, eu quero distância, é verdade, no namoro.

    Mas nelas votaria perfeitamente para qualquer cargo público que aspirassem.

    Dilma é dessas, personalidade fortíssima. Perguntem aos ex-maridos.


    Você é muito benvinda,

    Dilma Roussef.


    Tomara que, com a experiência obtida na luta clandestina,

    com Lamarca e outros que se foram,

    no seu mandato você consiga sequestrar

    para bem longe de Brasília e das chaves dos cofres públicos,

    toda a cúpúla apodrecida do PMDB e excelências correlatas.

    Bração do Guz
    www.guz.com.br
    www.bloguz.blogspot.com
    www.youtube.com/guzcartunista
    guzcartunista@gmail.com
    skype=guz2008
    Belo Horizonte ( a terra natal de Dilma Roussef)

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  2. O texto
    Os bagaços da ditadura

    foi postado também no

    www.bloguz.blogspot.com

    juntamente com o didático e precioso vídeo

    A ditadura militar no Brasil

    ou pelo link direto

    http://www.youtube.com/watch?v=p2cFSBwC1F0&feature=related

    Não deixem de ver: uma resumida lição de história,
    uma penosa,mas necessária relembrança...


    Obrigaço
    (obrigado e um abraço)
    do
    Guz
    Paulo Cangussu

    www.guz.com.br
    www.bloguz.blogspot.com

    http://blip.fm/GuzCartunista
    (a Rádio Guz FM, com as preferidas)

    www.blogdecaricaturas.blogspot.com
    www.contrateoguz.blogspot.com
    www.youtube.com/guzcartunista
    http://twitter.com/guzcartunista

    (31)99299882
    Skype= guz2008

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  3. O texto que se segue é uma introdução á minha declaraçáo de voto para DILMA ROUSSEF:
    A ditadura que nos afligiu durante 25 anos deixou-nos sequelas que, até hoje, nos importunam e prejudicam o avanço da cidadania e do processo democrático em nosso país.Ao contrário do editorial da Folha de São Paulo renomeando-a de Ditabranda, motivo suficiente para que todos os assinantes do jornal cancelassem suas assinaturas, tal a imbecilidade nele contida, foi uma ditadura feroz nos seus desígnios de barrar o desenvolvimento social de todo um povo.

    Uma das piores sequelas por ela aplicadas contra o povo brasileiro , o bagaço de todos esses anos de censura, mentiras, bajulações, pusilanimidades, iniquidades, foram os falsos heróis, que nos mostram hoje os pés de barro sujos de corrupção e ganância.Ser contra a ditadura num mundo dividido entre mocinhos e bandidos era um patamar ao qual se chegava sem muito esforço, testemunho eu.

    Militei entre revolucionários de chanchada que depois se mostraram a que vieram, transformando-se em alcaguetes.
    Quando fui preso, em 1966, em episódio já narrado no Bloguz, o delegadão do DOPS (na década de 90 morreria cego e odiado pelos filhos) encarregado do IPM, Inquérito Policial Militar, sobre o XXVIII Congresso da UNE em nossa cidade( e o acirramento da mobilização estudantil dele resultante), conhecia todos os meus passos de membro do Partidão, todas as reuniões, datas, conchavos e conclusões. E de outras organizações, como a Ação Popular, de cujas belas militantes eu me ocupava em sonhos românticos, dificilmente concretizados . Vangloriou-se que todas as organizações eram infiltradíssimas de agentes pagos pelos orgãos da repressão.E como até então tinha como certo ter sido eu o autor da façanha de quebrar-lhe a perna, nos combates de rua de setembro , prometeu-me solenemente que, na próxima prisão, minhas unhas seriam as primeiras a serem arrancadas.

    Acreditei nisso, recolhí-me e iniciei um processo duro e inevitável de revisão dos meus projetos futuros em que radicalizavam meus amigos, na direção da luta armada, insuspeitos da armadilha a que eram conduzidos.Fora chamado até para exercitar-me em tiro ao alvo, nas cercanias do condomínio Morro do Chapéu. Considerando a minha miopia de altos graus, ponderei-lhes que eu me tornaria uma ameaça maior do que os tanques do exército. No filme antológico de Ettore Scola, Casanova e a Revolução, o galante personagem, vivido por Marcelo Mastroiannni, envelhecido, ao ser cortejado por uma dama que quer incorporar-se à sua estatística horizontal, afirma com muita propriedade: A juventude é um defeito que a natureza logo se apressa em corrigir. Nada mais sábio.

    Amadurecí em semanas. O único contato que mantive com a nova organização que se dissentia do velho Partido de Luiz Carlos Prestes foi com o seu principal mentor, o ex- jornalista paraibano Mário Alves, nos seus quase cinquenta anos, um intelectual de espírito e simpatia, que nos visitava em nosso apartamento do edificio Senhora do Carmo, a mim e meu irmão, para discutirmos opções políticas e suarentas teorias do século XIX (?), em livros dos quais nunca consegui ler mais que um capítulo ( o marxismo foi escrito para ser lido nas tundras russas, nunca sob esse sol de carnaval), tentando cooptar-nos para sua nova linha de luta armada, e principalmente criticarmos álacremente as velhas lideranças stalinistas.

    Ainda lembro-me dele, sentado na cama de meu irmão, em frente à minha, rindo, o rosto largo e raspado do bigode que apresentava nos registros policiais. Dois anos depois, denunciado por um dos seus liderados, sob tortura, Mário seria preso, e na PE do Rio , flageladíssimo, inclusive com empalações de cassetetes, de cujas sequelas morreria de hemorragia sem nenhum socorro médico.

    Foram muitos os que conhceci ,cujos destinos se revelaram ainda piores.
    Lembremos de alguns casos exemplares como o de José Júlio Araújo, amigo de noites do edificio Maletta,
    (revelaria uma ocasião que amava uma ex-namorada que me trocara por um futuro melhor em Brasília,
    de quem decorara todos os detalhes anatõmicos, á distância ) .

    Depois de um período de treinamento em Cuba, é recebido em 1972 no Brasil pelo infiltrado-mor da repressão, o ex-cabo marinheiro Anselmo.
    Esse triste personagem, ainda vivo, oculto nas sombras do remorso, esperança maior da ala militarista da esquerda, de lendária fuga em 1965 de uma das prisões da Marinha, se bandeara com armas, nomes e destinos à sua mercê para o colo de Sérgio Fleury, o carrasco-mor incensado pelos militares (morreria em 1979, ao tentar passar de um barco para outro, embriagado) em cujas mãos havia os resquícios do DNA de dezenas de mortos sob tortura e assassinatos, entre eles o nosso Che, o ítalo-mulato-baiano, Carlos Marighela, ex-estudante de engenharia em Salvador e aplicado comissário político do PCB, com o qual romperia em 1965, impaciente com a passividade dos velhos líderes, inebriado pelos feitos de Fidel e Cuba. Foi dele a criativa idéia de utilizar os sequestros de autoridades para a obtenção de frutos pollíticos, uma prática que se disseminaria pelo mundo inteiro. O cantor e compositor mineiro Marku Ribas está digno de um Oscar no papel de Marighela no filme Batismo de Sangue, de Helvécio Ratton, baseado no livro homônimo de Frei Betto.

    José Júlio, ao desembarcar, fora enviado ao contato local, na pessoa do ex-cabo Anselmo. Foi preso sómente depois de visitar os outros contatos indicados pela organização em Cuba, que não eram do conhecimento de Anselmo. Só então foi preso, denunciando inadvertidamente toda uma estrutura da resistência, com todos presos e barbarizados. Zé Júlio, codinome o Jota, sucumbiria após doze horas de suplício, com uma sequência macabra de seus despojos. Enterrado clandestinamente, seu irmão mais novo, médico, consegue resgatar-lhe os ossos, embala-os numa caixa, e esconde o volume sob o telhado, em Belo Horizonte. Transtornado ao saber com detalhes da via-crucis do irmão , suicida-se.Os restos mortais de José Júlio são descobertos por acaso, muitos anos depois, quando um operário sobe pelo alçapão e descobre-os.

    Como não lembrar de Maria Auxiliadora Lara Barcellos, belíssima estudante de medicina de olhos claros de esmeralda, minha colega amanuense do DER/MG, do seu sorriso muito parecido ao da também bela atriz Sigourney Weaver (Alien), de sua elegãncia de mulher no auge da beleza juvenil, de sua letra caligraficamente perfeita? Militante da Colina, uma resultante para a luta armada do grupo da POLOP (Politica Operária, admiradores de Mao Tsé Tung e seus livrinhos vermelhíssimos), em 1971 seria presa, e mulher e bela, torturada sob inúmeros estupros. Resgatada através um dos sequestros de embaixadores no Brasil, se exilaria no Chile, de cujo golpe também fugiria já transtornada e deprimida, e depois se suicidaria sob as rodas do metrô de Berlim, fugindo para sempre da violéncia pontillhada na América Latina.

    Uma violência ungida e planejada por Kissinger e asseclas da CIA em seus confortáveis escritórios ás margens do Potomac, em Washington. Quando vejo esse resquício do pior envolvimento americano no cerceamento libertário de nosso continente, sempre me espanto porque Henry Kissinger ainda não foi julgado pelo Tribunal Internacional de Haia, responsável que foi pela orquestração de crimes contra a Humanidade, principalmente os ocorridos no Brasil, Argentina e Chile.

    Há pouco descobriu-se que vive em Belo Horizonte o sr. José Tavares, idôneo executivo de empresa, que, estudante de letras, sucedeu-nos na diretoria da UEE, a União Estadual dos Estudantes, nos idos de 60. Tavares também logo optaria pela luta armada e preso, sem que o sinistro Fleury lhe encostasse um dedo, passou a ser um agente da repressao infiltrado na maior organização da resistência, a ALN, a Aliança Libertadora Nacional, fundada por Marighela e, após sua morte, comandada pelo intelectual competente e corajoso, oriundo também dos quadros originais do PCB, Joaquim Câmara Ferreira, alcunhado O Velho.
    Tavares participou então de uma armadilha orientada por Fleury, e qual Judas, entregou o Velho à sanha torturadora, da qual morreria durante uma das seções torturantes a que o submeteram.

    E, finalmente, entre tantos outros tristes casos, há a morte , também sob tortura de José Carlos da Mata Machado, advogado e herdeiro nominal de um dos nossos melhores intelectuais e eruditos mineiros, o professor José Edgar da Mata Machado, um sobrenome famoso, presente em inúmeros outros sábios, como o aclamado filólogo Ayres, seu irmão, frutos da fecunda cidade de Diamantina. José Carlos, os cabelos negros bem penteados, corajoso e alegre como um gitano de Garcia Lorca, promessa maior da veneranda Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, foi denunciado por seu próprio cunhado, sem nenhuma outra justificativa além da pura ignomínia, pois Gilberto, esse é o nome, não mais militava .Sua existência era ignorada completamente pela repressão.
    Zé Carlos, cansado da clandestinidade, os sonhos exauridos, optara por exilar-se , e pedira para ser resgatado pelos familiares.Graças à denúncia psicótica do cunhado, é praticamente sequestrado do carro onde estava sendo conduzido. É levado então a Recife, e assassinado. Como era frequente, a notícia de sua morte foi divulgada com a mentira de que sucumbira sob um tiroteio dos próprios companheiros.

    Sim , tudo isso foi um triste período vivido pelo nosso rincão verde-amarelo, e como eu disse, dele restou um bagaço que se arvora heróico, e disso se aproveita para justificar melancólicos desdobramentos.Na lista que se segue, cujos comentários não são de minha lavra, estão alguns desses militantes. Alguns, se corromperam e muitos , felizmente, não. Como Cid Benjamim, que se jogou na luta armada aos 15 anos,
    acreditaram ainda em alguma esperança como o PT, mas logo se desiludiram, e hoje suas vozes ressoam críticas e independentes.
    Os outros, esses nós acompanhamos através dos boletins periódicos e usuais da Polícia Federal.

    Um abraço do Guz.

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