A União Democrática Nacional (UDN), criada em abril de 1945 como uma trincheira belicosa de oposição a Getúlio Vargas (e que tinha em Carlos Lacerda, o “Corvo”, uma de suas expressões mais agressivas), fixou no país o ideário da luta contra a “subversão”, contra a reforma agrária, contra a liberdade sindical, contra a ampliação dos direitos sociais, contra a soberania nacional e contra a intervenção do Estado na economia. A UDN foi extinta em 1964. O golpe militar que ela ajudou a organizar instituiu então o regime bipartidário e os udenistas se dividiram: a ala mais conservadora filiou-se à Aliança Renovadora Nacional (Arena), braço civil da ditadura militar, que em 1980 deu lugar ao PDS, Partido Democrático Social. A redemocratização permitiu um realinhamento ideológico mais amplo e deu nova expressão à estrutura político-partidária brasileira. O núcleo duro do PDS que tinha entre seus líderes Antonio Carlos Magalhães e Agripino Maia, indicados, respectivamente, como prefeitos biônicos de Salvador e Natal pela ditadura, fundou então, em 1985, o Partido da Frente Liberal, o PFL.Entenda-se por "liberal" aí a mera adaptação da narrativa política que serviu ao regime militar - a exemplo do que ocorreu entre os ventríloquos da mídia - ao idioma da redemocratização. O ideário semeado pelo udenismo permaneceria intacto nesse trânsito. Carlos Lacerda foi substituído por replicantes sem o brilho de sua oratória golpista e a léguas de distancia de seu escopo intelectual. Certos neologismos incorporaram-se ao velho discurso anti-nacional e anti-popular, cimentado por uma resistência esférica a qualquer avanço sobre o privilégio das elites. Entre as inovações do léxico abusou-se à larga de termos como desregulação, privatização, ”as reformas”, microagenda, auto-regulação de mercados, redução do custo Brasil etc. Enfim, toda uma gororoba que a crise atual e a estatização em curso no sistema financeiro mundial reduziu a uma montanha desordenada de ferrugem e ferro velho.Seria ingênuo, porém, não enxergar a persistência dos interesses assim vocalizados na disputa política subterrânea travada neste segundo turno das eleições municipais. Na verdade, em alguns lugares, o voto só recupera sentido político para além do cinismo e da desilusão, se a história embutida em cada escolha puder ser iluminada nesse curto período de tempo que antecede o retorno às urnas.A maquiagem dos anos 90 garantiu generosos nacos de poder ao conservadorismo brasileiro, que experimentou um de seus píncaros de influência na coalizão de centro-direita (PFL-PSDB) que sustentou os dois mandatos tucanos até 2002. Embalava esse tour de force “modernizante” a meta-síntese explicitada por Fernando Henrique Cardoso, a saber, destruir o legado de Vargas do Brasil , o que incluía avançar sobre os diretos trabalhistas e promover o desmonte da presença do Estado na economia, requisito para escancarar nosso mercado ao livre fluxo de comércio e de capitais.É preciso reconhecer a eficiência dessa plataforma. Ela avançou o bastante, inclusive à esquerda, para subtrair defesas cruciais das quais o Brasil poderá se ressentir nesta crise, como é o caso do controle sobre a conta de capitais. Ademais, só por pouco, muito pouco, não coroou o processo de privatizações com o fatiamento da Petrobrás, que de qualquer forma teve seu capital aberto pagando polpudos dividendos anuais aos acionistas da Bolsa de Nova Iorque.O figurino “liberal” dos egressos da ARENA, do PDS e da UDN, no entanto, não resistiria à oxigenação da história propiciada pelo avanço do debate democrático que ampliou o discernimento popular e pavimentou a reestruturação das redes de lutas sociais. Nesse sentido se a reconquista da democracia foi um processo longo e penoso para a esquerda, mostrou-se demolidor para o ambiente abafado no qual se protegiam, proliferavam e agiam as forças da direita.Apenas para citar alguns marcadores históricos, tivemos desde o final dos anos 70 o fim da censura (com avanços da imprensa independente), a Lei da Anistia, a primeira eleição para governadores, o ciclo das grandes greves operárias do ABC, a criação do Partido dos Trabalhadores, a Constituição de 1988, os FSMs, a derrubada de Collor, a eleição de Fernando Henrique Cardoso e a dupla vitória de Lula, em 2002 e 2006.A direita brasileira não passaria impunemente por esse processo. Ele escancarou o rosto, a agenda e o discurso do PFL iluminando entranhas daquilo que havia de mais retrógrado e elitista no espectro político do país. Nas eleições de 2006 essa transparência mostrou-se letal: o PFL só elegeu o governador do Distrito Federal. Sua bancada encolheu de 84 deputados federais, eleitos em 2002, para 65. O ideário e a sigla haviam se tornado inviáveis sob as novas condições de vento e temperatura, impondo-se uma recauchutagem urgente para que o barco não viesse a afundar de vez.Em 2007 as forças herdeiras da ARENA e da UDN promoveram uma retirada branca da cena política. Em março, o PFL trocou de nome e mudou sua face pública. Foi assim que surgiram os Democratas, inicialmente identificados como DEMO, tendo à frente uma nova geração da mesma cepa: em substituição a ACM (falecido) e a Bornhausen - enterrado vivo pelos eleitores - emergem Rodrigo Maia Filho e Antonio Carlos Magalhães Neto.Esse processo de “rejuvenescimento” e luta pela sobrevivência eleitoral da direita brasileira registra um novo e importante capítulo nas eleições municipais deste ano, sabidamente uma preliminar para 2010.
* Saul Leblon é jornalista
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