segunda-feira, 9 de novembro de 2009

PT e o acordo com o Vaticano

Negociado há décadas, o acordo entre os governos brasileiro e do Vaticano, que o Senado acaba de aprovar, oferece um escudo aos petistas contra a ofensiva da pré-candidata do PV à Presidência da República, Marina Silva (AC), na base católica em que o partido se julgava hegemônico.

Gilberto Carvalho, chefe do gabinete pessoal da Presidência, admite que o prejuízo com a saída da senadora é significativo nessa base social do PT: "Um grande número de intelectuais católicos, progressistas, foi para o PV apoiar Marina, temos de admitir isso". Gilberto, que acredita que a candidatura de Marina à Presidência tira mais votos do PT do que de outros partidos, enxerga ruídos ideológicos entre a senadora e sua nova legenda: "O PV também tem suas contradições. Posiciona-se a favor de questões contra as quais a Marina milita".

Para evitar a exposição de divergências entre o partido e sua potencial candidata à Presidência, o PV está revisando seu programa, de 1994, no tocante a temas como descriminalização de drogas e aborto.

Para o sociólogo Rudá Ricci, diretor-geral do Instituto Cultiva, o desafio de Marina é conseguir convencer o eleitor de baixa renda, que não tem a questão ambiental como pauta prioritária: "As chances de Marina conseguir apoio são grandes junto às lideranças intermediárias da igreja católica. Só que a base social da igreja, os fiéis, está diretamente vinculada ao Bolsa Família e aumento do salário mínimo".

Aprovado no Senado no dia 7 deste mês, o documento, na prática, pouco altera a relação entre o governo e a instituição. Mas, alerta Rudá, configura-se como um gesto certeiro do pragmatismo lulista, na busca por uma reaproximação com a Igreja Católica, cuja relação passou sucessivos desgastes ao longo dos oito anos de seu governo: "É a senha de um acordo de cúpula. Disciplinará a oposição e a resistência das organizações pastorais mais progressistas".

No episódio de maior tensão entre o atual governo e a Igreja Católica, o bispo Luiz Flávio Cappio protagonizou duas greves de fome, em 2005 e 2007, em protesto às obras de transposição das águas do Rio São Francisco (BA). Cappio e o presidente, porém, não se encontraram na visita realizada pelo presidente e a ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, para vistoria das obras, neste mês. O religioso participava de encontro com lideranças católicas da região de Barreiras.

Outro entrevero deu-se em 2005, quando o arcebispo do Rio de Janeiro, Dom Eusébio Scheid, acusou Lula de ir a Roma para explorar politicamente a morte do papa João Paulo II. "Lula não é católico, é caótico".

Já Waldemar Rossi, coordenador da Pastoral Operária da Arquidiocese de São Paulo, não economiza palavras duras quanto ao acordo e à postura do presidente Lula: "O efeito do acordo é nocivo, porque amordaça as comunidades e dá aval ao presidente, que pode dizer por aí que atende às reivindicações dos católicos. Lula quer proximidade com a ala da igreja que aceitar ser capacho dele. Ele usa o movimento católico para discursar, mas não ouve seus pedidos. Só a alta cúpula tem sua atenção".

Frei Josaphat argumenta que o documento não tem a intenção de contemplar os pedidos das comunidades de base. "É uma obra da diplomacia, um tratado de natureza jurídica. Uma formalização de costumes, que se dá por coincidência de interesses das duas partes. Sempre que haja na atividade religiosa necessidade de respaldo jurídico, o acordo estará lá para isso".

O cientista político Dermi Azevedo, da Secretaria da Justiça e Defesa da Cidadania de São Paulo, atribui o esforço da cúpula da Igreja Católica em aprovar o acordo à necessidade desta firmar território em um país cujos índices de migração de católicos que aderem ao pentecostalismo é cada vez maior: "Não há grandes personagens, notáveis publicamente, na Igreja Católica hoje. A reação é clara, nunca se falou tanto na possibilidade de termos santos brasileiros. É preciso alimentar o simbolismo. O acordo é parte desse jogo de estratégia".

A aprovação do acordo coincide ainda com sucessivos movimentos de aproximação da ministra com o eleitorado religioso. Dilma esteve em variados eventos no último ano - de presbiterianos à Canção Nova, passando por missa comandada pelo Padre Marcelo Rossi, Assembleia de Deus (da qual Marina Silva faz parte) e, por último, na Basílica de Nosso Senhor do Bonfim (BA), considerado ícone do sincretismo religioso.

O cientista César Romero Jacob, da PUC-RIO, enxerga na postura da ministra uma estratégia condizente com o perfil religioso do eleitorado brasileiro hoje: "Lula se valeu da mesma fórmula política utilizada por Fernando Collor em 1989 e Fernando Henrique em 1994 e 1998. Para se ganhar as eleições presidenciais, num país de dimensões continentais e tão diversificado como o Brasil, é preciso fazer alianças com oligarquias locais e regionais, onde estão concentrados 46% dos eleitores; conquistar o apoio de políticos populistas e pastores evangélicos pentecostais, que têm uma presença forte nas periferias metropolitanas pobres, é fundamental. Dilma está buscando esse eleitorado. Já a Igreja Católica vive um momento pluralista, do ponto de vista político, então os votos se espalham".

No culto da Igreja Assembleia de Deus, Dilma teve a companhia do ex-governador Anthony Garotinho (PR-RJ). Tecendo uma série de elogios à ministra no altar, Garotinho, presbiteriano, em nada lembrava o homem que outrora acusou o presidente de praticar vodu, na carta intitulada "Por que, como cristão, não voto em Lula", em 2006.

O PT conservou até aqui boa parte da base católica que forma, ao lado dos sindicalistas e de ex-guerrilheiros, o tripé de sua fundação trinta anos atrás . "O PT surgiu como um portador da mensagem que nós, padres ligados às pastorais sociais, passávamos. A identificação foi imediata. Por isso, a adesão de membros da igreja ao partido foi grande", conta o frei e escritor Carlos Josaphat, da Paróquia Sagrada Família, de São Paulo. A ascensão de um PT pragmático, a partir de 2002, teria afastado os movimentos sociais que ajudaram a fundar o partido, sendo que os poucos religiosos que permaneceram "fazem isso mais por ligação afetiva", na opinião do frei.

O documento de 20 artigos garante imunidade tributária à igreja e reconhece às instituições assistenciais religiosas igual tratamento tributário e previdenciário previsto a entidades civis semelhantes. O texto também assegura assistência espiritual aos fiéis e protege o patrimônio da igreja e dos locais de culto, os símbolos, imagens e objetos culturais.

O artigo 11 garante o ensino religioso facultativo nas escolas públicas de ensino fundamental, inclusive de outras crenças que não a Católica. Tal possibilidade já era prevista pelo artigo 33 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, sendo que o novo documento não traz mudanças efetivas a esse respeito.

Ponto mais sensível do acordo, o documento diz que ministros ordenados, fiéis consagrados mediante votos ou que realizam tarefas de caráter voluntário não poderão reclamar vínculo empregatício junto à instituição. O artigo busca livrar o tesouro eclesiástico das crescentes reclamações trabalhistas tanto de leigos que trabalham em instituições sociais católicas quanto de ex-padres e ex-freiras.

Para três advogados trabalhistas consultados pelo Valor, no entanto, o acordo não afasta a possibilidade de que ações junto à Justiça do Trabalho venham a lograr êxito: "Uma freira que presta serviços como enfermeira, por exemplo, tem de se reportar a um médico, cumprir horários e é uma subordinada, presta serviços. Isto caracteriza vínculo empregatício", atesta Osvaldo Rotbande, ex-presidente da Associação Nacional Brasileira de Advogados Trabalhistas. Para o professor da Universidade de São Paulo (USP) Nelson Mannrich, "a própria natureza da atividade voluntária afasta o vínculo", ainda que, alerta, o acordo apenas seja um arcabouço legal, sem nenhum poder de veto ao prescrito na lei trabalhista brasileira.Valor Econômico

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